sábado, 7 de dezembro de 2013

Streamside Day: A possível gênese de um mundo improvável

        
       Crianças fantasiadas de animais silvestres se divertem ao plantar uma árvore no centro de uma cidade repleta de jardins e casas “pós-modernas”, no interior do estado de NY. Assim têm início as festividades alusivas ao feriado mais importante da pequena cidade de Streamside Knolls. A comemoração segue com um desfile conduzido por uma banda marcial, o prefeito e demais autoridades proferem discursos carismáticos, mesas e tendas oferecem deliciosos quitutes, enquanto a música anima a festa e policiais e bombeiros zelam pela segurança dos participantes.

Este seria apenas mais um feriado local não fosse o fato de ter sido deliberadamente arquitetado pelo artista francês Pierre Huyghe, que ao tomar conhecimento da construção da cidade resolveu inventar para ela um mito fundador e convidar a comunidade a celebrá-lo. O trabalho de Huyghe costuma girar em torno de questões como construção de identidades, tanto coletivas quanto individuais, e de conceitos que ora se opõem ora se mesclam, como os binômios realidade/ficção e história/memória. Temas, essencial ou minimamente, abordados na obra em questão, anunciada pelo artista da seguinte forma: “Estamos no ano 01, o começo de uma história (story) da qual você já é parte. Entre as montanhas e as margens do rio Hudson, um vilarejo está se formando na floresta. Famílias estão se mudando, a construção de ruas e casas está quase completa, jardins estão crescendo, e logo as praças estarão cheias.”
Pierre Huyghe organizou um evento que contasse com a participação dos habitantes da nova cidade e que, necessariamente, fizesse algum sentido para eles. A cidade havia acabado de ser criada, e ele resolveu propor uma tradição baseada em algo que todas aquelas pessoas tivessem - ou parecessem ter - em comum, a busca utópica por uma vida bucólica. Uma reedição do mito da Arcádia.
Streamside Day trata de construção sobre construção. Um mito construído a partir de uma sociedade que se construiu apoiada em um mito, o da possibilidade de se viver harmonicamente com natureza no coração de uma potência capitalista em pleno século XXI. Contudo, a natureza que eles encontram é tão artificial quanto a cidade, posto que foi reconstruída por mãos humanas há quatrocentos anos. Neste contexto a ideia de realidade perde seus contornos.
O que os moradores estão celebrando pertence a um mundo situado entre o real e o imaginário. A partir do ponto de vista do artista, os anseios da coletividade ganham forma, e aquele quinhão de ficção previamente contido na realidade se amplifica a ponto de determinar a identidade daquele grupo. Huyghe parece concordar com Ferreira Gullar quando este afirma que “o objetivo da arte não é, como se diz, revelar a realidade mas, sim, reinventá-la”.
A própria cidade se assemelha a uma fábula; como diz Pierre Huyghe, é “pura imagem”, ecoa o projeto da Disney para uma cidade chamada Celebration, na Flórida, que almejava ser a cidade perfeita. Um mundo de faz-de-conta reivindicando seu lugar no mundo. A construção de Streamside e seu rápido povoamento apontam para uma necessidade corrente de fuga da realidade contemporânea, evoca a possibilidade de certas pessoas temerem o presente e almejarem encontrar um local tranquilo, com ar puro, área verde e vizinhos acolhedores, um local anterior a uma suposta contaminação provocada pelo progresso. E o feriado funciona, sobretudo, como um marco, um índice de que este local existe. O fato de o feriado ter sido criado, não diz muito, pois a escolha de uma data específica para comemorar determinado evento, com seus possíveis significados, esbarra muitas vezes em arbitrariedades, em apropriações e esvaziamentos de outras comemorações, em suma, intervenções humanas, como ocorre com o Natal, para citar o caso mais conhecido.
Se é verdade ou não que todas aquelas pessoas migraram para este idílio devido à motivação apresentada por Huyghe não é relevante para a realização da obra. O ponto é que no dia 11 de outubro de 2003 elas estavam lá, celebrando algo, e isto foi o suficiente para gerar uma realidade alternativa, consonante ou não com os fatos. E para reforçar esta presença, o artista produz um vídeo em 16mm, que abre com uma reencenação do início do filme Bambi, de Walt Disney, acompanha o protagonista saindo da floresta e entrando em uma casa similar a um cubo branco, e logo depois uma família se mudando para a nova cidade, introduzindo, desta forma, o mito. Na sequência é apresentado um documentário sobre as festividades comemorativas do primeiro aniversário da cidade.
Entender este vídeo como mera documentação seria reduzir sua significância para o contexto da obra, posto que sua produção, assim como o projeto para o centro cultural da comunidade ou a contratação de fotógrafos, por exemplo, é parte integrante daquele grande happening. São maneiras de dar conta de toda a situação. O vídeo, ou de forma geral, a imagem fotográfica é “um método de dar realce ao real”, como aponta Susan Sontag, em seu ensaio O mundo-imagem. Ou seja, não importa o quão real ou fictício seja o feriado, sua motivação, ou a própria noção de comunidade existente em Streamside Knolls, o documentário garante certa indicialidade.

          Streamside Day não é exatamente uma obra de ficção. A folia aconteceu. A proposta foi feita por um artista, mas a escolha de realizar a celebração e adotá-la, não. Se foi e continua sendo repetida a cada ano não interessa ao artista e, tampouco, se configura como algo cuja decisão esteja ao seu alcance, já que a comemoração pertence aos cidadãos. O feriado pode ser artificial, assim como a própria cidade, sem, no entanto, se privar de ser tão real quanto ela.


Nenhum comentário:

Postar um comentário