sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Debate artístico em debate

            Recentemente, li o que pode ser entendido como um debate entre Ferreira Gullar e Noemi Jaffe acerca da condição de arte de determinadas produções atuais, e isto, por si só, me alegrou, visto que comprova a existência de um mínimo debate artístico, sobre o qual já me sentia desesperançoso.
             Vida longa a Ferreira Gullar por submeter-se ao papel de outro em um cenário tão homogeneizado, onde tudo o que é produzido, devidamente enquadrado em exigências raramente artísticas e adequadamente exibido, instantaneamente, recebe o status de arte, sem a necessidade de um debate crítico. A crítica costuma ser elaborada a posteriori com o intuito de ratificar a condição do que está sendo exibido e assegurar seu lugar no maravilhoso mundo da Arte, escrito assim mesmo, com um A bem maiúsculo. Textos laudatórios povoam um ambiente que deveria estar repleto de questionamentos e incertezas.
        Noemi Jaffe desempenha bem o seu papel de advogada de defesa da arte contemporânea, deliberando brevemente sobre algumas condições básicas para a existência de manifestações artísticas difusas e criticando, com propriedade, as tendências formalistas de Gullar. A escritora aponta como infundados alguns questionamentos levantados pelo poeta, tais como a necessidade de artesania e a beleza das obras como critério determinante para que algo seja arte.
            O interessante de tal querela é sua relevância enquanto tal. O processo de oposição de pensamentos sobrepuja qualquer veredicto que se intente alcançar. Arrisco-me a tal afirmação posto que cada contendor apresenta pontos de vistas que apesar de contrários carregam em si, cada qual, ideias que não devem ser descartadas.
Bandeira Branca
            Em favor da arte contemporânea sustenta-se a tese de que o fazer artístico não precisa estar atrelado a certa artesania, como quer Gullar, e a ampliação da ideia de belo pelas propostas modernas e contemporâneas, além da validade e importâncias de outras categorias, como é o caso do feio. Em oposição ao detrator da “arte do vale-tudo”, Jaffe argumenta com precisão ao constatar que na obra “Bandeira Branca” de Nuno Ramos “houve intervenção humana: na concepção, na montagem, na relação espacial que se criou pelo contraste entre os urubus e o prédio de Niemeyer, no poema emitido pelas caixas de som e no estranhamento causado pela presença horrífica em um lugar em que se supõe encontrar somente o 'belo'." Além de ilustrar seu posicionamento com obras de arte as quais Ferreira Gullar, de forma alguma, desconsideraria.

            Todavia, acredito que haja um deslize ao exemplificar as possibilidades da crítica com um texto seu feito para a obra “vaga”, da artista Tatiana Blass. Isto por que a obra funcionava como letreiro luminoso para uma exposição – composta por pinturas de cavalete – que apresentava uma parceria entre a artista e a escritora, e, assim sendo, torna-se complicado, mesmo perigoso, entender como crítico um texto sobre algo de que o autor faça parte, ainda que de forma indireta.
Vaga
            É exatamente neste ponto que o argumento de Ferreira Gullar ganha força: a debilidade da crítica contemporânea. Não é o caso de ter a crítica o imperativo de ir contra o instituído, de apontar pontos negativos ou adotar sempre uma postura cítrica e cética, contudo, muito pouco relevante é uma crítica que apenas enaltece a obra criticada. E a grande dificuldade enfrentada está calcada no papel que tais textos se propõem a desempenhar e nos critérios de que podem se valer para executar uma análise com discernimento.
            Os papéis do crítico e do curador vêm se sobrepondo de forma a esvaziar o discurso contestador e privilegiar a mera apresentação de obras e artistas. Os escritos que deveriam levar à reflexão se veem absorvidos por interesses e relações que não excluem a especulação financeira que permeia o mundo da arte ou a busca por um lugar ao sol, por exemplo. A crise que assola a crítica de arte - sem resvalar de forma significativa na literária e, sobretudo, cinematográfica – não é novidade, e apesar de negada ou ignorada por alguns, promove sérios debates acolhidos por importantes nomes dentre críticos e demais teóricos do campo da arte tais como Tadeu Chiarelli, Lorenzo Mammì, Sérgio Bruno Martins e pensadores da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), apenas para citar alguns.
            Esta preocupação representa um significativo primeiro passo – admitir que algo não está como deveria – rumo a um cenário melhor, contudo, assumir as falhas e chorar sobre os escombros não basta. Faz-se necessário buscar alternativas.
Bicho - Lygia Clark
 O que incomoda Gullar talvez seja não tanto aquilo que ele não entende como arte, mas a falta de critérios para que se entenda. Entretanto, não cabe, como ele insiste, tentar resgatar com nostalgias critérios insuficientes para as novas (mas, nem tanto) manifestações artísticas. O conceito de arte é mutável, algo vivo, como comprova sua própria teoria do não-objeto, impensável no século XV, para estabelecer um comparativo.

            Cabe ressaltar que tanto a crença de Noemi Jaffe nos caminhos da arte contemporânea quanto a total falta de fé de Ferreira Gullar merecem seu lugar em um debate que instigue nossa percepção acerca do que pulula no cenário artístico e desperte um senso crítico individual, o que talvez nos apareça como um escape, uma solução ainda que precária para o esmorecimento da crítica instituída.