quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A força invisível dos objetos


por Eduardo Biz

Originalmente publicado em Arte Brasil

detalhe de "linha de terra", de túlio pinto
Detalhe da obra de Túlio Pinto:
Linha de Terra (2013) / Chapa de ferro e vidro (cubo 50x150x150, vidro 150x200cm e 100mm)
Há uma característica comum a todas as esculturas: o poder de alterar um espaço. Toda obra escultórica se relaciona intimamente com o recinto que ocupa, e faz parte da experiência contemplativa da arte sentir sua presença material atuando no ambiente. Quando preenchido por uma escultura, um local jamais será igual ao que foi antes. Mais do que isso, ele passa a operar como um laboratório onde possa ser desbravada a tridimensionalidade do volume que o ocupa.

Túlio Pinto / Linha de Terra (2013) / Imagem: Galeria Baró
No caso de “Linha de Terra”, escultura de Túlio Pinto, essa relação de ocupação atinge outras proporções, extrapolando o espaço e ampliando-se até o espectador. Como acontece nos passes de mágica, quando se materializa aquilo que era aparentemente impossível, a obra faz duvidar sobre a realidade dos fatos; incita a questionar a possibilidade de sua existência, fazendo suspeitar que o próprio espaço em que se encontra possa ser forjado.


Quando a chance da ilusão de ótica aciona esse estado de alerta constante, busca-se atentamente por um deslize qualquer, uma inexistente instabilidade que, a qualquer momento, revele que tudo não passa de um truque. Não há aqui, entretanto, nenhuma ilusão incapaz de ser explicada pela física.

Trata-se de um cubo de aço, de 150 centímetros em cada lado, que apoia um de seus vértices no chão. Paralelamente ao cubo, uma lâmina de vidro o atravessa, formando um tripé. O vidro sustenta o bloco — e vice-versa — graças ao jogo entre os pesos desses materiais, de modo que a estabilidade de ambos os elementos dependa exclusivamente um do outro.
Territórios, 2013

O contraste de forças, bastante presente na linha de pensamento que o artista vem construindo em sua arte, resulta em um equilíbrio improvável que coloca o frágil versus o bruto. Ao mesmo tempo em que inverte as potências de uma chapa de ferro e de uma lâmina de vidro, “Linha de Terra” sabota essa disputa, uma vez que uma não se sustentaria sem a outra.

Passado este primeiro impacto cético, a firmeza da composição é entendida e comprovada, e então o trabalho revela simultaneamente a força e a fragilidade oculta nos materiais. É precisamente neste delicado momento que a obra localiza seu estado de graça: na precisão estática que mantém de pé aquilo que pode desabar a qualquer momento. É o instante que congela o que está prestes a acontecer.

Silêncio, 2011
Aproximando diferenças, torna-se possível perceber que os objetos possuem uma força conflitante ao potencial que se costuma associar a eles. O vidro, facilmente quebrável, tem uma robustez invisível intrínseca a ele, que só é percebida quando articulada por um ângulo incomum.

Em outras palavras, a obra provoca a reflexão sobre todas as estruturas ao redor, e até mesmo sobre os alicerces morais de cada pessoa. Certezas particulares são colocadas em xeque quando alternativas que coexistem na mesma realidade são detectadas. O baque deste esclarecimento faz abrir os olhos para caminhos e soluções antes assombreadas.
Tempo, 2010                                     Cumplicidade #2, 2013

A experiência estética de “Linha de Terra” se dá nessa percepção de possibilidades. O ponto de equilíbrio perfeito — que somente a exatidão das leis da física e da matemática poderia atingir — é um fenômeno que sempre foi possível, embora nunca antes vislumbrado.

Deste modo, faz sentido o título da escultura. Na geometria descritiva, linha de terra é uma linha imaginária que intercepta dois planos, servindo como referência para identificar a localização de determinado ponto no espaço. Sem ela, não é possível enxergar aquilo que se quer encontrar.

Essa poética serve como analogia à própria função da arte na visão de Túlio: tangenciar a sociedade por meio de reflexões acerca de assuntos cotidianos e até vulgares. São questões que, apesar de sempre presentes, não são consideradas com atenção justamente por nunca terem sido deslocadas a outro ponto de vista.
Transposição, 2012
Em vez de apontar verdades, a obra conduz ao conhecimento de possíveis realidades. Por meio de um jogo lúdico, em muito semelhante a um truque de mágica, “Linha de Terra” ajuda a compreender o que nosso pensamento condicionado se limita a considerar impossível: a existência, ainda que oculta, do outro lado da moeda.