quinta-feira, 10 de julho de 2014

Renata Cruz – Os mundos que construímos


Múltiplos percursos são possíveis ao adentrarmos a obra de RenataCruz, contudo, o primeiro impacto que surge ao nos depararmos com sua “Proposta para Atualização de uma Enciclopédia” passa, naturalmente, pelo encantar-se com o detalhe. O aglomerado de pessoas esperando o trem, a variedade de espécies animais e vegetais, os casebres de Paraisópolis ou as formigas minuciosamente descritas pelo toque aquarelado de seus pincéis denunciam, além da inegável perícia, a dedicação da artista. Remetem a uma espécie de tempo incompatível com um ligeiro passar de olhos, repudiam o imediatismo, convidando o visitante a dedicar-se mais ao contato com cada obra e investigar todas as suas nuances formais e conceituais, abrindo-se a novas experiências.
Este abrir-se à experiência pode ser encarado simultaneamente como consequência de uma relação estética e um dos temas explorados pela artista, que subverte o papel primordial de toda enciclopédia – impor verticalmente uma gama de conhecimentos pré-estabelecidos – oferecendo uma oportunidade de diálogo, de conhecimento construído. O livro “O mundo em que vivemos”, utilizado como referência, pretende apresentar este mundo como algo dado, enquanto Renata propõe uma relação afetiva, estimulando o público a perceber o tal mundo em que vivemos de forma a experimentá-lo e desenvolver suas próprias relações.
A estratégia utilizada consiste, de certo modo, em aproximar a vida selvagem, abordada pelo livro, e a cotidiana, vivida pela artista e seus contemporâneos. Ao lado de uma primorosa reprodução em aquarela da página da enciclopédia relativa ao conceito de camuflagem, com texto explicativo e imagem ilustrativa, Renata dispõe pinturas que remetem a comportamentos em que nós, criaturas urbanas, nos valemos desta tática para nos imiscuirmos na paisagem, nos tornando parte de um contexto ou completos invisíveis. Nosso relacionamento com a natureza, majoritariamente opressor, é evidenciado pela grama que luta contra o concreto pelo direito de crescer, ou pela comida enlatada que perde a dimensão natural de sua origem. O lado animal de um ser autoproclamado racional é cruamente exposto mediante a releitura de uma fotografia jornalística sobre uma briga de torcidas, que sequer se configuraria como uma legítima luta pela vida.
Contudo, não é só a aproximação entre estes dois mundos que serve a tal atualização, mas também o acréscimo de um terceiro ponto de vista: ao ambiente fechado da enciclopédia, Renata sobrepõe o universo expansível de Jorge Luis Borges. O escritor traz aqui uma dúvida sobre o quanto conhecemos deste mundo tão insólito quanto qualquer obra de ficção, e amplia com suas “legendas” as possíveis significações de cada imagem. A certeza não passa de uma ilusão bem articulada. O mundo não seria um simples livro aberto, mas uma coleção de livros esperando para serem lidos e interpretados.
Duas paixões pessoais – livros e aquarela – se combinam, magistralmente, para comentar assuntos importantes para a arte contemporânea, para a própria artista e para a nossa relação com o mundo. Questões como artesania, apropriação, necessidade de conhecimento e mediação são, ao mesmo tempo, forma e conteúdo neste conjunto de obras que parte de uma preocupação central com as interações entre o indivíduo e o mundo circundante para se ramificar na busca de novas perguntas, cujas respostas se traduzem em experiências individuais, formas únicas de apreensão de mundos particulares.

Os percursos, traçados ou sugeridos, são como os corredores de um labirinto que voltam sempre a um ponto de incerteza e recomeço, propício para criar e recriar, explorando novos caminhos, como confirmam a última obra exposta, “A Continuidade da Vida” – com páginas em branco multiplicando-se a partir de uma sobreposição de livros que remetem a ideias como liberdade e desafio – , e a premonitória citação no início da exposição: “Quando nos sentimos mais seguros, en­tão acontece algo: um pôr-do-sol, o final de um coro de Eurípedes; e outra vez estamos per­didos”. 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Luiz Telles - Recorte de um Percurso Mítico

O Livro Vermelho (João Batista passa pela Isbá), 2011
Acrílica sobre lona de caminhão
72 x 92 cm (aberto)

Nossas histórias folclóricas remetem a mitos transmitidos oralmente ao longo de gerações. Tais mitos traziam em seu cerne o intuito de educar moral e socialmente as diversas comunidades por meio de sentimentos e emoções de forte impacto, como o medo e a piedade. Monteiro Lobato operou no Folclore Brasileiro algo similar a infantilização e adocicação que Walt Disney imprimiu às lendas europeias coletadas pelos Irmãos Grimm, esvaziando seu caráter soturno.


João Batista Gilgamesh Batista - 
Pedras, 2013
Acrílica sobre tela
60 x 60 cm
Telles percorre o caminho inverso, revirando o sótão das tradições a fim de atingir a camada mais profunda da alma. Distorce o contorno dócil de figuras conhecidas via “Sítio do Pica-Pau Amarelo” para trazer à tona criaturas verdadeiramente monstruosas. Mais que ilustrar uma revisão das lendas, sua obra corporifica aqueles seres e estabelece um diálogo com uma mitologia própria.


O Livro do Saci, 2008
Acrílica sobre lona de caminhão
72 x 92 cm (aberto)
A materialidade e o estilo, sobretudo, de seus livros remetem a ideia de uma artesanalidade primordial, menos decorativa que utilitária. São objetos que carregam uma história que para reverberar precisa ser manuseada, solicitam a interação como fazem os mitos. A gama sucinta de cores e o traço estilizado, muitas vezes esquemático, não simplificam a obra, ao contrário, a carregam com certa aura de mistério. A cor agride ao mesmo tempo em que seduz o olhar, as figuras fogem e nos obrigam a segui-las, as cenas sugerem enredos como uma voz que nos leva a delírios imaginativos. A rudeza do suporte e a presença física da tinta comungam para que o mito se torne presença, aludindo, ainda, a  livros de eras remotas, enquanto as citações visuais às histórias em quadrinhos distendem a dimensão temporal, situando a obra no presente.

Encontro com o Deus Pagão #01 - Curupira, 2011
Acrílica sobre lona de caminhão
210 x 135 cm
O caráter atemporal próprio dos mitos, que se adaptam a distintas realidades incorporando idiossincrasias e metamorfoseando-se, encontra eco no entrecruzamento do conto contemporâneo criado por Telles com as lendas por ele apropriadas. A destreza com que o artista transita pelos  diversos suportes - de quadros a instalações - reforça a ideia deste percurso dialógico e expansivo. Em um caso, o artista conta a trajetória de  João Batista, um homem comum que se descobre descendente de uma mística tradição familiar, encontrando-se com seres folclóricos, criando narrativas paralelas, até se transformar finalmente em um Curupira, encontrando sua essência ou talvez a soma de suas experiências.