quarta-feira, 22 de agosto de 2012

“Com amor e com medo”*

*Extraído da música “Paranóia” de Raul Seixas.


Passei uns dias em Salvador e confesso que demorei um pouco para me acostumar com a cidade. Fui de ônibus do aeroporto ao Pelourinho – quase 2h entre esperar o ônibus e chegar ao hostel. Fora o café da manhã meia-boca antes de sair de casa, a viagem de avião, a canseira e o fato de estar sozinho, me senti verdadeiramente incomodado com a mendicância institucionalizada que me deu as boas-vindas. Um sem-número de moradores de rua e vendedores de fitinhas coloridas me abordaram insistentemente até que eu conseguisse me hospedar. O mesmo aconteceu quando finalmente, com a barriga nas costas, saí para almoçar e dar uma volta. Já estava com medo de andar sozinho por entre os becos estreitos repletos de sorrisos desesperados. Voltei ao hostel decidido a sair só pra trabalhar (ah! Eu estava viajando a serviço).
Dormi à tarde, comi um hot-dog à noite, fiquei no quarto, dormi, e no dia seguinte acordei com o humor bem melhor e, ao que me pareceu, os importunadores estavam de folga.
Passeei tranquilo pela cidade e descobri que ela é incrível!
Eu estava caminhando por entre páginas de um livro de história. Eu quase pude ver escravos passando por mim, com uma alegria sofrida, uma paz limitada e uma sensação fugaz de liberdade.
Acabei gostando da cidade...
Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia
Então, bem menos carrancudo, dediquei boa parte de meu pouco tempo a conhecer as igrejas da cidade: a Catedral Basílica de Salvador, a N. Sª. da Conceição da Praia, a nada menos do que fantástica Igreja e Convento São Francisco, Ordem terceira de São Domingos etc. e pude, então, confirmar meu medo por  igrejas católicas.
Estas igrejas me obrigam a um olhar enviesado de baixo pra cima, eu sinto que de alguma forma, por algum motivo eu estou errado, uma opressão me cai aos ombros e por pouco não me dobram os joelhos. O eterno lusco fusco do interior refletido nos ornamentos, as imagens, talvez misericordiosas, perscrutando meus passos me inspiram temor e culpa.
Consigo, sinceramente, perceber que a grandiosidade das igrejas reflete a intenção de seus patrocinadores. Acredito que há séculos elas conseguem a piedade e o temor dos fiéis (e, em alguns casos, mesmo dos não fiéis).
Catedral Basílica de Salvador
Observando o esplendor das igrejas, sua riqueza e magnificência, me pergunto se Deus está mesmo presente em todo aquele luxo. O poder econômico, político e social que a Igreja exercia não deixa muito espaço para a religiosidade. O brilho do ouro da “São Francisco” – que em nada reflete a vida escolhida pelo santo – termina por ofuscar o brilho espiritual que deveria emanar da casa de Deus.
A Igreja foi patrocinada pelos poderosos, para ser por eles usada. Os pobres quando podiam assistir às missas o faziam de pé, quase por detrás do paravento.
Contudo, a sociedade era extremamente religiosa, e a despeito de todo o contexto social, os desfavorecidos se espremiam na entrada da nave. Os bastardos, filhos das mucamas com os senhores, desenvolviam o sincretismo em um canto reservado, ao lado da nave.
Em igrejas menos suntuosas, mas igualmente imponentes, o temor a Deus se materializava e inspirava o amor a Ele. Ao prestar a atenção em todo o esforço e sofrimento que os verdadeiros fiéis precisaram enfrentar para ter seu quinhão de contato com Deus passei a valorizar mais a fé destas pessoas. Não importam os artifícios, não importam as verdades e as mentiras, até hoje milhares de pessoas conseguem estabelecer uma relação simbiótica com estes lugares e encontrar paz, conforto e segurança. Ainda que isso possa não ser uma condição ideal, é difícil vê-la como perniciosa.
Sim, eu sinto medo ao entrar nas Igrejas, mas cosigo entender, depois de conhecê-las melhor, que apesar de toda essa inspiração de temor ser de fato intencional, o que prevalece, escondido nas sombras e refletido no ouro, é o amor.
Igreja São Franisco

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Caravaggio no MASP


Este final de semana foi bastante proveitoso apesar de eu ter gasto, ao todo, mais de duas horas em filas. Das quais mais de uma e meia para entrar na exposição "Impressionismo - Paris e a Modernidade", no CCBB. Os outros quarenta minutos foram dedicados à espera de uma vaga na “Caravaggio e seus seguidores” em cartaz no MASP.
Pretendo Compartilhar minhas impressões com relação a ambas as exposições. Sendo que neste post vou me ater àquela com a qual o MASP nos presenteou. É verdade que um conjunto de seis obras pode parecer pouco, mas representa quase 10% do que hoje o mundo conhece da obra do artista. E apesar de nos dar aquele gosto de quero mais, é preciso aceitar que conhecer de perto uma ou duas obras do mestre já seria suficientemente satisfatório.
Sou um tanto suspeito para falar de Caravaggio, já que é comum o fã perder muito de seu senso crítico, mas arriscarei ainda assim, posto que de forma alguma fui o primeiro a considerá-lo um dos maiores mestres de todos os tempos.
São Jerônimo que escreve. 1605-6
 Não vou tentar descrever a sensação que experimentei ao entrar na primeira sala quando com uma leve rotação do pescoço me deparei com o magistral “São Jerônimo que escreve” com aquele manto vermelho saltando das trevas e envolvendo um iluminado São Jerônimo, que nos convence de sua concentração tanto pelo cenho quanto pela mão que segura o livro. Poderia falar das minúcias da tela de mais de 1,50m de largura, de cada detalhe representado pelo artista, como o desfiado do manto sob o braço direito do santo, a precisão anatômica, a maestria da pincelada ou o total domínio do claro-escuro, mas a sensação de me deparar com tudo isso de uma vez é, simplesmente, indescritível.
Medusa Murtola. 1597
Caravaggio subiu ao Olimpo das Artes. Qualquer estudo básico da História da arte acaba despendendo um tempo significante para apresentar o artista. Mas apesar de já assim tão sedimentado e digerido, o trabalho de Caravaggio não passa a nossos olhos como uma bela pintura, pacificada pelo costume, e sim como um golpe que nos obriga ao contraste. É bela, porém feia; Um prazer, porém soturno; É treva mas também é luz. Sua obra não vem nos contar algo, ela grita! Obriga-nos a olhá-la e nos petrifica, tal qual a cabeça da Meduza. Uma das obras mais incríveis que tive o prazer de experimentar.
Os quadro deste mestre barroco dispensa explicações. Não há Wölfflin que destrinche sua estrutura formal ou Argan que analise o poder de persuasão de sua imagem, pois a intenção do artista, sua experiência de vida, o drama da cena, tudo explode na superfície da tela e fulmina o observador, atravessando retina e espírito. Antes que se dê conta ele foi atingido e enquanto, ofegante, se recupera do baque processa as informações e intensifica sua relação com a obra.
Estes objetos são indiscutivelmente tidos como obras de arte, mundialmente conhecidos e apreciados, mas por quê? Thomas Mann, em seu livro Morte em Veneza, com complexa simplicidade esclarece: “As pessoas não sabem por que elas tornam famosas uma obra de arte. Sem o menor conhecimento de causa, julgam descobrir centenas de méritos para justificar tamanho apreço; mas o verdadeiro fundamento de seu aplauso é algo imponderável, é simpatia.”
Simpatia, bem entendido, não é um mero gostar casual, mas um deixar-se seduzir sem perceber, devido à força de atração que o objeto sedutor emana. Quem simpatiza se sente à vontade, se interessa, busca um maior contato. A simpatia inicial pode se tornar amizade verdadeira, pode se transfigurar em amor.
São João Batista alimentando o cordeiro. 1605-10
Ao nos depararmos com seu “São João Batista alimentando o cordeiro”, antes de analisar o quadro e interpretar a cena, nós simpatizamos com ele, captamos tristeza, solidão, melancolia, elementos que transcendem a mera ilustração e que permitem uma relação íntima entre público e obra.
Conhecer o quão conturbada e intensa foi a breve vida do artista, entender as propostas do barroco e sua contextualização contra-reformista, bem como reconhecer as passagens bíblicas captadas em muitas das telas deste “gênio da pintura” pode ser ideal para que se frua as obras em sua completude. Mas o que as transformam em obras-primas, criações de um verdadeiro artista, é poder dispensar tudo isso.
São Francisco em Meditação. 1606

São januário degolado ou Santo Agapito. c.1610

Retrato do cardeal (Benedetto Giustiniani?). 1599-1600