segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Quem são as mulheres de Cindy Sherman?


por Mayara Schneider

em 19 de novembro de 2013



Untitled Film Stills #3
            Untitled Film Stills é uma série fotográfica da artista norte americana Cindy Sherman. Produzido no período de 1977 à 1980, o trabalho consiste em 69 imagens preto e branco, impressas em papel gelatina, no tamanho aproximado de  19 cm x 24 cm. Nelas Sherman se retrata vestida de personagens criados e encenados em ambientes que lembram cenas de um filme. Esta é considerada uma de suas realizações mais importantes e foi responsável pela consolidação de sua carreira internacionalmente. No Brasil, uma seleção desta obra foi apresentada no pavilhão da Bienal no ano de 2011, junto com seus trabalhos mais recentes em uma sala exclusiva. A exposição, chamada Em nome dos artistas, propôs exibir os maiores representantes da arte norte-americana contemporânea. Desde dezembro de 2005, a série completa pertence ao MoMa, sendo portanto, preservada sua identidade como um todo.

            As fotografias tem como elemento principal uma figura feminina única como se pode ver em Untitled film Stills #3, deslocada à direita, e Untitled film Stills #21,  onde ocupa um espaço central. Em ambas está representada entre o plano médio e o primeiro plano; tanto na linguagem fotográfica quanto cinematográfica estes enquadramentos mostram um único sujeito recortado pela região do quadril à cabeça e pela região do ombro à cabeça. A segunda parte da composição é o fundo da imagem, sendo os planos aproximados da protagonista tanto no ambiente urbano (#21) quanto no ambiente doméstico (#3). Outro ponto a ser observado são os objetos secundários e o próprio fundo que aparecem na composição levemente desfocados. Estes traços suaves bem como a escala de cinzas permitem que a figura principal se destaque com pouco contraste num jogo de luz e sombra em que se vê o conteúdo com clareza e tem-se a sensação de unidade.
           
Untitled Film Stills #21
Nas duas obras selecionadas, as personagens olham para fora do quadro sugerindo outras pessoas, objetos ou situações que não se pode observar dentro do recorte. Este recurso ativa o imaginário e permite que uma história possa ser inventada por cada um dos espectadores, fazendo com que se construa imediatamente um sentido próprio. Esta sensação é reforçada através do reconhecimento da personagem como uma mulher possível, onde a identidade de Sherman se dissolve e dá lugar à uma heroína anônima. Carregada de clichés, como a linguagem corporal, a expressão facial e o drama, fica clara a suspensão do tempo de uma narrativa que começou e continuará além do momento da imagem fotografada, passando a impressão de um trecho especialmente selecionado de um filme ou de uma telenovela. Sua textura granulada, similar a uma impressão de jornal, de fato faz lembrar a fotonovela, a qual a artista buscou inspiração para a realização do projeto.          

             Existem diversas outras configurações entre planos e essas personagens femininas ao longo da série, sempre retratadas como figura única e principal, recortadas de um tempo ativo e em sintonia com o plano de fundo.
            
             O título Untitled Film Stills evoca duas questões: a primeira é a ideia do fotograma, que se caracteriza por uma imagem individual de um filme e portanto pode se relacionar com a produção cinematográfica. Outra questão é o uso da palavra Untitled (Sem título) e o uso de números para diferenciar as fotografias entre si. Este ponto é esclarecido por Sherman, que diz evitar colocar títulos nas imagens para preservar a sua ambiguidade.
            
             Toda a produção da obra é realizada pela artista que assume as funções de câmera, modelo, maquiadora e figurinista. Assim como Cindy Sherman representa os muitos papéis figurados em suas imagens: a dona de casa, a atriz, a bibliotecária. Estaria ela tentando representar os diversos papéis sociais existentes em cada pessoa?
            
             Cindy afirma ter tido o hábito de quando criança se vestir e inventar mulheres que ela só podia ser no mundo da fantasia. Pode-se compreender este tempo de fantasia com o tempo de duração do trabalho, este dividido entre: o momento limitado da produção e o de permanência através do registro. A obra tem um grande impacto e perdura ao permirtir que um desejo seja materializado através de um fotograma que registra os fragmentos por vezes ocultos em cada indivíduo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Streamside Day: A possível gênese de um mundo improvável

        
       Crianças fantasiadas de animais silvestres se divertem ao plantar uma árvore no centro de uma cidade repleta de jardins e casas “pós-modernas”, no interior do estado de NY. Assim têm início as festividades alusivas ao feriado mais importante da pequena cidade de Streamside Knolls. A comemoração segue com um desfile conduzido por uma banda marcial, o prefeito e demais autoridades proferem discursos carismáticos, mesas e tendas oferecem deliciosos quitutes, enquanto a música anima a festa e policiais e bombeiros zelam pela segurança dos participantes.

Este seria apenas mais um feriado local não fosse o fato de ter sido deliberadamente arquitetado pelo artista francês Pierre Huyghe, que ao tomar conhecimento da construção da cidade resolveu inventar para ela um mito fundador e convidar a comunidade a celebrá-lo. O trabalho de Huyghe costuma girar em torno de questões como construção de identidades, tanto coletivas quanto individuais, e de conceitos que ora se opõem ora se mesclam, como os binômios realidade/ficção e história/memória. Temas, essencial ou minimamente, abordados na obra em questão, anunciada pelo artista da seguinte forma: “Estamos no ano 01, o começo de uma história (story) da qual você já é parte. Entre as montanhas e as margens do rio Hudson, um vilarejo está se formando na floresta. Famílias estão se mudando, a construção de ruas e casas está quase completa, jardins estão crescendo, e logo as praças estarão cheias.”
Pierre Huyghe organizou um evento que contasse com a participação dos habitantes da nova cidade e que, necessariamente, fizesse algum sentido para eles. A cidade havia acabado de ser criada, e ele resolveu propor uma tradição baseada em algo que todas aquelas pessoas tivessem - ou parecessem ter - em comum, a busca utópica por uma vida bucólica. Uma reedição do mito da Arcádia.
Streamside Day trata de construção sobre construção. Um mito construído a partir de uma sociedade que se construiu apoiada em um mito, o da possibilidade de se viver harmonicamente com natureza no coração de uma potência capitalista em pleno século XXI. Contudo, a natureza que eles encontram é tão artificial quanto a cidade, posto que foi reconstruída por mãos humanas há quatrocentos anos. Neste contexto a ideia de realidade perde seus contornos.
O que os moradores estão celebrando pertence a um mundo situado entre o real e o imaginário. A partir do ponto de vista do artista, os anseios da coletividade ganham forma, e aquele quinhão de ficção previamente contido na realidade se amplifica a ponto de determinar a identidade daquele grupo. Huyghe parece concordar com Ferreira Gullar quando este afirma que “o objetivo da arte não é, como se diz, revelar a realidade mas, sim, reinventá-la”.
A própria cidade se assemelha a uma fábula; como diz Pierre Huyghe, é “pura imagem”, ecoa o projeto da Disney para uma cidade chamada Celebration, na Flórida, que almejava ser a cidade perfeita. Um mundo de faz-de-conta reivindicando seu lugar no mundo. A construção de Streamside e seu rápido povoamento apontam para uma necessidade corrente de fuga da realidade contemporânea, evoca a possibilidade de certas pessoas temerem o presente e almejarem encontrar um local tranquilo, com ar puro, área verde e vizinhos acolhedores, um local anterior a uma suposta contaminação provocada pelo progresso. E o feriado funciona, sobretudo, como um marco, um índice de que este local existe. O fato de o feriado ter sido criado, não diz muito, pois a escolha de uma data específica para comemorar determinado evento, com seus possíveis significados, esbarra muitas vezes em arbitrariedades, em apropriações e esvaziamentos de outras comemorações, em suma, intervenções humanas, como ocorre com o Natal, para citar o caso mais conhecido.
Se é verdade ou não que todas aquelas pessoas migraram para este idílio devido à motivação apresentada por Huyghe não é relevante para a realização da obra. O ponto é que no dia 11 de outubro de 2003 elas estavam lá, celebrando algo, e isto foi o suficiente para gerar uma realidade alternativa, consonante ou não com os fatos. E para reforçar esta presença, o artista produz um vídeo em 16mm, que abre com uma reencenação do início do filme Bambi, de Walt Disney, acompanha o protagonista saindo da floresta e entrando em uma casa similar a um cubo branco, e logo depois uma família se mudando para a nova cidade, introduzindo, desta forma, o mito. Na sequência é apresentado um documentário sobre as festividades comemorativas do primeiro aniversário da cidade.
Entender este vídeo como mera documentação seria reduzir sua significância para o contexto da obra, posto que sua produção, assim como o projeto para o centro cultural da comunidade ou a contratação de fotógrafos, por exemplo, é parte integrante daquele grande happening. São maneiras de dar conta de toda a situação. O vídeo, ou de forma geral, a imagem fotográfica é “um método de dar realce ao real”, como aponta Susan Sontag, em seu ensaio O mundo-imagem. Ou seja, não importa o quão real ou fictício seja o feriado, sua motivação, ou a própria noção de comunidade existente em Streamside Knolls, o documentário garante certa indicialidade.

          Streamside Day não é exatamente uma obra de ficção. A folia aconteceu. A proposta foi feita por um artista, mas a escolha de realizar a celebração e adotá-la, não. Se foi e continua sendo repetida a cada ano não interessa ao artista e, tampouco, se configura como algo cuja decisão esteja ao seu alcance, já que a comemoração pertence aos cidadãos. O feriado pode ser artificial, assim como a própria cidade, sem, no entanto, se privar de ser tão real quanto ela.