Tenho certa dúvida
quanto aos critérios de avaliação de obras de arte em nossa era. Sei bem que
não podemos nos iludir e acreditar que os mesmos parâmetros adotados pelos
modernistas nos sejam de grande valia, muito menos o estilo vasariano, pois
cada qual dava conta de seus respectivos modelos de arte. Nossa arte é
caracterizada pela tão comentada multiplicidade. Não há um meio por excelência,
não há um estilo definido que se considere o definitivo, ao contrário, de
esculturas de mármore à masturbação, passando por galinhas decapitadas e
quadros a óleo, tudo realmente pode ser arte.
Mas nem tudo é.
Suponhamos, ao
estilo de DANTO (2005), dois artistas imaginários com obras visualmente
idênticas, ou ao menos muito parecidas, que estejam ainda em fase de
assimilação pelo sistema das artes. Não discutirei aqui a qualidade das obras
ou dos nossos pretensos artistas, quero focar os critérios de inserção no
sistema.
Os dois apresentam,
cada um, uma pedra irregular pouco maior que um punho médio. A primeira não foi
“batizada” pelo artista, o que nos obrigará a chamá-la: sem título. À segunda, o seu criador deu o nome de Materialização I. Ambos levam sua obra a
galerias, salões, concursos de arte e assim por diante na esperança de
ingressarem no mundo das artes, apesar de que, independente do crivo das
instituições, os dois têm convicção de que são grandes artistas.
Sem Título trata de uma experiência
pessoal de seu idealizador, expressa como seu coração se tornou duro e seco –
como pedra – após seguidas desilusões amorosas e traumas familiares, mas que
mesmo a partir da aridez de sua vida é possível criar algo transcendente, puro
e, estranhamente belo, como ele acredita que deva ser a arte.
Já Materialização I é uma “clara” alusão ao
famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, e se propõe a ser, uma referência
aos encalços que encontramos no nosso caminho e, ao mesmo tempo, abrir margem
para inúmeras interpretações, ao gosto do fruidor, que deve participar da obra
com suas experiências pessoais para que esta alcance pleno efeito, e,
concomitantemente, é tão somente uma pedra e nada mais, como, ironicamente,
afirmou o poeta (e, certamente, seria o que o nosso artista responderia ao ser
interpelado a respeito do significado de sua obra).
Por alguma razão, o
segundo artista nunca conseguiu o desejado reconhecimento, enquanto o primeiro
já está realizando inúmeras coletivas e conseguiu até uma individual em Nova
Iorque. Não se sabe se este tem algum laço de amizade com um grande galerista
que facilitou sua vida, se os lugares aonde ele levou sua obra contavam com
avaliadores mais sensíveis que os locais aonde o outro artista apresentou a
dele, ou, ainda, se teve a sorte de conhecer um colecionador que
verdadeiramente apreciou sua obra e a comprou por uma quantia que a fez se
tornar valiosa, ou ao menos interessante.
São inúmeras as
possibilidades que inserem uma obra no meio artístico e expurgam outra. Seja
como for, o visitante de uma exposição ao se deparar com uma pedra sob a efígie
Sem Título precisará de muito esforço
para apreciá-la ou, ao menos, compreendê-la. Precisará conhecer o artista,
entender sua linha de pensamento, suas intenções, ou ignorar tudo isso e estar
disposto a, a partir do momento que aceitar que está diante de uma obra de arte
– já que pedras não ficam em galerias de arte –, proceder a uma interpretação
inteiramente subjetiva, mesmo que ao olhar o “coração de pedra”, por um
capricho do destino, relacione-o com o poema de Drummond.
Este relato
ficcional – mas não improvável – nos remete ao conceito de coeficiente
artístico de DUCHAMP, “uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso
embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente.” (2008: 73), e ao
mesmo tempo revela aquilo que me alfineta meu cérebro, aquela dificuldade em compreender
os critérios, que parecem correr o risco de serem vagos, arbitrários, injustos,
falhos ou facilmente corruptíveis.
Os motivos que
levaram sem título a ser considerada
uma obra de arte parecem estar para sempre fora do alcance do público e isso
gera desconforto, porém, o outro lado da questão me parece ainda mais perverso:
Por que Materialização I não é
“Arte”?
Será puramente uma
questão institucional, será o acaso, a sorte? Acredito que concluir assim seria
esvaziar demasiadamente o debate. Prefiro acreditar que exista algum critério
que ainda não se fez claro para mim.
O que separa a arte
de todo o resto?
É neste limite que
surge a minha dúvida. Sigo estudando, visitando, pensando, mas ainda não achei
uma resposta. Pode ser que um dia a encontre, ou pode ser que descubra que em
nosso contexto esta pergunta sequer é relevante. O fato é que, enquanto não
compreender o que realmente acontece, não cessarei de questionar.