quinta-feira, 10 de julho de 2014

Renata Cruz – Os mundos que construímos


Múltiplos percursos são possíveis ao adentrarmos a obra de RenataCruz, contudo, o primeiro impacto que surge ao nos depararmos com sua “Proposta para Atualização de uma Enciclopédia” passa, naturalmente, pelo encantar-se com o detalhe. O aglomerado de pessoas esperando o trem, a variedade de espécies animais e vegetais, os casebres de Paraisópolis ou as formigas minuciosamente descritas pelo toque aquarelado de seus pincéis denunciam, além da inegável perícia, a dedicação da artista. Remetem a uma espécie de tempo incompatível com um ligeiro passar de olhos, repudiam o imediatismo, convidando o visitante a dedicar-se mais ao contato com cada obra e investigar todas as suas nuances formais e conceituais, abrindo-se a novas experiências.
Este abrir-se à experiência pode ser encarado simultaneamente como consequência de uma relação estética e um dos temas explorados pela artista, que subverte o papel primordial de toda enciclopédia – impor verticalmente uma gama de conhecimentos pré-estabelecidos – oferecendo uma oportunidade de diálogo, de conhecimento construído. O livro “O mundo em que vivemos”, utilizado como referência, pretende apresentar este mundo como algo dado, enquanto Renata propõe uma relação afetiva, estimulando o público a perceber o tal mundo em que vivemos de forma a experimentá-lo e desenvolver suas próprias relações.
A estratégia utilizada consiste, de certo modo, em aproximar a vida selvagem, abordada pelo livro, e a cotidiana, vivida pela artista e seus contemporâneos. Ao lado de uma primorosa reprodução em aquarela da página da enciclopédia relativa ao conceito de camuflagem, com texto explicativo e imagem ilustrativa, Renata dispõe pinturas que remetem a comportamentos em que nós, criaturas urbanas, nos valemos desta tática para nos imiscuirmos na paisagem, nos tornando parte de um contexto ou completos invisíveis. Nosso relacionamento com a natureza, majoritariamente opressor, é evidenciado pela grama que luta contra o concreto pelo direito de crescer, ou pela comida enlatada que perde a dimensão natural de sua origem. O lado animal de um ser autoproclamado racional é cruamente exposto mediante a releitura de uma fotografia jornalística sobre uma briga de torcidas, que sequer se configuraria como uma legítima luta pela vida.
Contudo, não é só a aproximação entre estes dois mundos que serve a tal atualização, mas também o acréscimo de um terceiro ponto de vista: ao ambiente fechado da enciclopédia, Renata sobrepõe o universo expansível de Jorge Luis Borges. O escritor traz aqui uma dúvida sobre o quanto conhecemos deste mundo tão insólito quanto qualquer obra de ficção, e amplia com suas “legendas” as possíveis significações de cada imagem. A certeza não passa de uma ilusão bem articulada. O mundo não seria um simples livro aberto, mas uma coleção de livros esperando para serem lidos e interpretados.
Duas paixões pessoais – livros e aquarela – se combinam, magistralmente, para comentar assuntos importantes para a arte contemporânea, para a própria artista e para a nossa relação com o mundo. Questões como artesania, apropriação, necessidade de conhecimento e mediação são, ao mesmo tempo, forma e conteúdo neste conjunto de obras que parte de uma preocupação central com as interações entre o indivíduo e o mundo circundante para se ramificar na busca de novas perguntas, cujas respostas se traduzem em experiências individuais, formas únicas de apreensão de mundos particulares.

Os percursos, traçados ou sugeridos, são como os corredores de um labirinto que voltam sempre a um ponto de incerteza e recomeço, propício para criar e recriar, explorando novos caminhos, como confirmam a última obra exposta, “A Continuidade da Vida” – com páginas em branco multiplicando-se a partir de uma sobreposição de livros que remetem a ideias como liberdade e desafio – , e a premonitória citação no início da exposição: “Quando nos sentimos mais seguros, en­tão acontece algo: um pôr-do-sol, o final de um coro de Eurípedes; e outra vez estamos per­didos”. 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Luiz Telles - Recorte de um Percurso Mítico

O Livro Vermelho (João Batista passa pela Isbá), 2011
Acrílica sobre lona de caminhão
72 x 92 cm (aberto)

Nossas histórias folclóricas remetem a mitos transmitidos oralmente ao longo de gerações. Tais mitos traziam em seu cerne o intuito de educar moral e socialmente as diversas comunidades por meio de sentimentos e emoções de forte impacto, como o medo e a piedade. Monteiro Lobato operou no Folclore Brasileiro algo similar a infantilização e adocicação que Walt Disney imprimiu às lendas europeias coletadas pelos Irmãos Grimm, esvaziando seu caráter soturno.


João Batista Gilgamesh Batista - 
Pedras, 2013
Acrílica sobre tela
60 x 60 cm
Telles percorre o caminho inverso, revirando o sótão das tradições a fim de atingir a camada mais profunda da alma. Distorce o contorno dócil de figuras conhecidas via “Sítio do Pica-Pau Amarelo” para trazer à tona criaturas verdadeiramente monstruosas. Mais que ilustrar uma revisão das lendas, sua obra corporifica aqueles seres e estabelece um diálogo com uma mitologia própria.


O Livro do Saci, 2008
Acrílica sobre lona de caminhão
72 x 92 cm (aberto)
A materialidade e o estilo, sobretudo, de seus livros remetem a ideia de uma artesanalidade primordial, menos decorativa que utilitária. São objetos que carregam uma história que para reverberar precisa ser manuseada, solicitam a interação como fazem os mitos. A gama sucinta de cores e o traço estilizado, muitas vezes esquemático, não simplificam a obra, ao contrário, a carregam com certa aura de mistério. A cor agride ao mesmo tempo em que seduz o olhar, as figuras fogem e nos obrigam a segui-las, as cenas sugerem enredos como uma voz que nos leva a delírios imaginativos. A rudeza do suporte e a presença física da tinta comungam para que o mito se torne presença, aludindo, ainda, a  livros de eras remotas, enquanto as citações visuais às histórias em quadrinhos distendem a dimensão temporal, situando a obra no presente.

Encontro com o Deus Pagão #01 - Curupira, 2011
Acrílica sobre lona de caminhão
210 x 135 cm
O caráter atemporal próprio dos mitos, que se adaptam a distintas realidades incorporando idiossincrasias e metamorfoseando-se, encontra eco no entrecruzamento do conto contemporâneo criado por Telles com as lendas por ele apropriadas. A destreza com que o artista transita pelos  diversos suportes - de quadros a instalações - reforça a ideia deste percurso dialógico e expansivo. Em um caso, o artista conta a trajetória de  João Batista, um homem comum que se descobre descendente de uma mística tradição familiar, encontrando-se com seres folclóricos, criando narrativas paralelas, até se transformar finalmente em um Curupira, encontrando sua essência ou talvez a soma de suas experiências.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Quem são as mulheres de Cindy Sherman?


por Mayara Schneider

em 19 de novembro de 2013



Untitled Film Stills #3
            Untitled Film Stills é uma série fotográfica da artista norte americana Cindy Sherman. Produzido no período de 1977 à 1980, o trabalho consiste em 69 imagens preto e branco, impressas em papel gelatina, no tamanho aproximado de  19 cm x 24 cm. Nelas Sherman se retrata vestida de personagens criados e encenados em ambientes que lembram cenas de um filme. Esta é considerada uma de suas realizações mais importantes e foi responsável pela consolidação de sua carreira internacionalmente. No Brasil, uma seleção desta obra foi apresentada no pavilhão da Bienal no ano de 2011, junto com seus trabalhos mais recentes em uma sala exclusiva. A exposição, chamada Em nome dos artistas, propôs exibir os maiores representantes da arte norte-americana contemporânea. Desde dezembro de 2005, a série completa pertence ao MoMa, sendo portanto, preservada sua identidade como um todo.

            As fotografias tem como elemento principal uma figura feminina única como se pode ver em Untitled film Stills #3, deslocada à direita, e Untitled film Stills #21,  onde ocupa um espaço central. Em ambas está representada entre o plano médio e o primeiro plano; tanto na linguagem fotográfica quanto cinematográfica estes enquadramentos mostram um único sujeito recortado pela região do quadril à cabeça e pela região do ombro à cabeça. A segunda parte da composição é o fundo da imagem, sendo os planos aproximados da protagonista tanto no ambiente urbano (#21) quanto no ambiente doméstico (#3). Outro ponto a ser observado são os objetos secundários e o próprio fundo que aparecem na composição levemente desfocados. Estes traços suaves bem como a escala de cinzas permitem que a figura principal se destaque com pouco contraste num jogo de luz e sombra em que se vê o conteúdo com clareza e tem-se a sensação de unidade.
           
Untitled Film Stills #21
Nas duas obras selecionadas, as personagens olham para fora do quadro sugerindo outras pessoas, objetos ou situações que não se pode observar dentro do recorte. Este recurso ativa o imaginário e permite que uma história possa ser inventada por cada um dos espectadores, fazendo com que se construa imediatamente um sentido próprio. Esta sensação é reforçada através do reconhecimento da personagem como uma mulher possível, onde a identidade de Sherman se dissolve e dá lugar à uma heroína anônima. Carregada de clichés, como a linguagem corporal, a expressão facial e o drama, fica clara a suspensão do tempo de uma narrativa que começou e continuará além do momento da imagem fotografada, passando a impressão de um trecho especialmente selecionado de um filme ou de uma telenovela. Sua textura granulada, similar a uma impressão de jornal, de fato faz lembrar a fotonovela, a qual a artista buscou inspiração para a realização do projeto.          

             Existem diversas outras configurações entre planos e essas personagens femininas ao longo da série, sempre retratadas como figura única e principal, recortadas de um tempo ativo e em sintonia com o plano de fundo.
            
             O título Untitled Film Stills evoca duas questões: a primeira é a ideia do fotograma, que se caracteriza por uma imagem individual de um filme e portanto pode se relacionar com a produção cinematográfica. Outra questão é o uso da palavra Untitled (Sem título) e o uso de números para diferenciar as fotografias entre si. Este ponto é esclarecido por Sherman, que diz evitar colocar títulos nas imagens para preservar a sua ambiguidade.
            
             Toda a produção da obra é realizada pela artista que assume as funções de câmera, modelo, maquiadora e figurinista. Assim como Cindy Sherman representa os muitos papéis figurados em suas imagens: a dona de casa, a atriz, a bibliotecária. Estaria ela tentando representar os diversos papéis sociais existentes em cada pessoa?
            
             Cindy afirma ter tido o hábito de quando criança se vestir e inventar mulheres que ela só podia ser no mundo da fantasia. Pode-se compreender este tempo de fantasia com o tempo de duração do trabalho, este dividido entre: o momento limitado da produção e o de permanência através do registro. A obra tem um grande impacto e perdura ao permirtir que um desejo seja materializado através de um fotograma que registra os fragmentos por vezes ocultos em cada indivíduo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Streamside Day: A possível gênese de um mundo improvável

        
       Crianças fantasiadas de animais silvestres se divertem ao plantar uma árvore no centro de uma cidade repleta de jardins e casas “pós-modernas”, no interior do estado de NY. Assim têm início as festividades alusivas ao feriado mais importante da pequena cidade de Streamside Knolls. A comemoração segue com um desfile conduzido por uma banda marcial, o prefeito e demais autoridades proferem discursos carismáticos, mesas e tendas oferecem deliciosos quitutes, enquanto a música anima a festa e policiais e bombeiros zelam pela segurança dos participantes.

Este seria apenas mais um feriado local não fosse o fato de ter sido deliberadamente arquitetado pelo artista francês Pierre Huyghe, que ao tomar conhecimento da construção da cidade resolveu inventar para ela um mito fundador e convidar a comunidade a celebrá-lo. O trabalho de Huyghe costuma girar em torno de questões como construção de identidades, tanto coletivas quanto individuais, e de conceitos que ora se opõem ora se mesclam, como os binômios realidade/ficção e história/memória. Temas, essencial ou minimamente, abordados na obra em questão, anunciada pelo artista da seguinte forma: “Estamos no ano 01, o começo de uma história (story) da qual você já é parte. Entre as montanhas e as margens do rio Hudson, um vilarejo está se formando na floresta. Famílias estão se mudando, a construção de ruas e casas está quase completa, jardins estão crescendo, e logo as praças estarão cheias.”
Pierre Huyghe organizou um evento que contasse com a participação dos habitantes da nova cidade e que, necessariamente, fizesse algum sentido para eles. A cidade havia acabado de ser criada, e ele resolveu propor uma tradição baseada em algo que todas aquelas pessoas tivessem - ou parecessem ter - em comum, a busca utópica por uma vida bucólica. Uma reedição do mito da Arcádia.
Streamside Day trata de construção sobre construção. Um mito construído a partir de uma sociedade que se construiu apoiada em um mito, o da possibilidade de se viver harmonicamente com natureza no coração de uma potência capitalista em pleno século XXI. Contudo, a natureza que eles encontram é tão artificial quanto a cidade, posto que foi reconstruída por mãos humanas há quatrocentos anos. Neste contexto a ideia de realidade perde seus contornos.
O que os moradores estão celebrando pertence a um mundo situado entre o real e o imaginário. A partir do ponto de vista do artista, os anseios da coletividade ganham forma, e aquele quinhão de ficção previamente contido na realidade se amplifica a ponto de determinar a identidade daquele grupo. Huyghe parece concordar com Ferreira Gullar quando este afirma que “o objetivo da arte não é, como se diz, revelar a realidade mas, sim, reinventá-la”.
A própria cidade se assemelha a uma fábula; como diz Pierre Huyghe, é “pura imagem”, ecoa o projeto da Disney para uma cidade chamada Celebration, na Flórida, que almejava ser a cidade perfeita. Um mundo de faz-de-conta reivindicando seu lugar no mundo. A construção de Streamside e seu rápido povoamento apontam para uma necessidade corrente de fuga da realidade contemporânea, evoca a possibilidade de certas pessoas temerem o presente e almejarem encontrar um local tranquilo, com ar puro, área verde e vizinhos acolhedores, um local anterior a uma suposta contaminação provocada pelo progresso. E o feriado funciona, sobretudo, como um marco, um índice de que este local existe. O fato de o feriado ter sido criado, não diz muito, pois a escolha de uma data específica para comemorar determinado evento, com seus possíveis significados, esbarra muitas vezes em arbitrariedades, em apropriações e esvaziamentos de outras comemorações, em suma, intervenções humanas, como ocorre com o Natal, para citar o caso mais conhecido.
Se é verdade ou não que todas aquelas pessoas migraram para este idílio devido à motivação apresentada por Huyghe não é relevante para a realização da obra. O ponto é que no dia 11 de outubro de 2003 elas estavam lá, celebrando algo, e isto foi o suficiente para gerar uma realidade alternativa, consonante ou não com os fatos. E para reforçar esta presença, o artista produz um vídeo em 16mm, que abre com uma reencenação do início do filme Bambi, de Walt Disney, acompanha o protagonista saindo da floresta e entrando em uma casa similar a um cubo branco, e logo depois uma família se mudando para a nova cidade, introduzindo, desta forma, o mito. Na sequência é apresentado um documentário sobre as festividades comemorativas do primeiro aniversário da cidade.
Entender este vídeo como mera documentação seria reduzir sua significância para o contexto da obra, posto que sua produção, assim como o projeto para o centro cultural da comunidade ou a contratação de fotógrafos, por exemplo, é parte integrante daquele grande happening. São maneiras de dar conta de toda a situação. O vídeo, ou de forma geral, a imagem fotográfica é “um método de dar realce ao real”, como aponta Susan Sontag, em seu ensaio O mundo-imagem. Ou seja, não importa o quão real ou fictício seja o feriado, sua motivação, ou a própria noção de comunidade existente em Streamside Knolls, o documentário garante certa indicialidade.

          Streamside Day não é exatamente uma obra de ficção. A folia aconteceu. A proposta foi feita por um artista, mas a escolha de realizar a celebração e adotá-la, não. Se foi e continua sendo repetida a cada ano não interessa ao artista e, tampouco, se configura como algo cuja decisão esteja ao seu alcance, já que a comemoração pertence aos cidadãos. O feriado pode ser artificial, assim como a própria cidade, sem, no entanto, se privar de ser tão real quanto ela.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A força invisível dos objetos


por Eduardo Biz

Originalmente publicado em Arte Brasil

detalhe de "linha de terra", de túlio pinto
Detalhe da obra de Túlio Pinto:
Linha de Terra (2013) / Chapa de ferro e vidro (cubo 50x150x150, vidro 150x200cm e 100mm)
Há uma característica comum a todas as esculturas: o poder de alterar um espaço. Toda obra escultórica se relaciona intimamente com o recinto que ocupa, e faz parte da experiência contemplativa da arte sentir sua presença material atuando no ambiente. Quando preenchido por uma escultura, um local jamais será igual ao que foi antes. Mais do que isso, ele passa a operar como um laboratório onde possa ser desbravada a tridimensionalidade do volume que o ocupa.

Túlio Pinto / Linha de Terra (2013) / Imagem: Galeria Baró
No caso de “Linha de Terra”, escultura de Túlio Pinto, essa relação de ocupação atinge outras proporções, extrapolando o espaço e ampliando-se até o espectador. Como acontece nos passes de mágica, quando se materializa aquilo que era aparentemente impossível, a obra faz duvidar sobre a realidade dos fatos; incita a questionar a possibilidade de sua existência, fazendo suspeitar que o próprio espaço em que se encontra possa ser forjado.


Quando a chance da ilusão de ótica aciona esse estado de alerta constante, busca-se atentamente por um deslize qualquer, uma inexistente instabilidade que, a qualquer momento, revele que tudo não passa de um truque. Não há aqui, entretanto, nenhuma ilusão incapaz de ser explicada pela física.

Trata-se de um cubo de aço, de 150 centímetros em cada lado, que apoia um de seus vértices no chão. Paralelamente ao cubo, uma lâmina de vidro o atravessa, formando um tripé. O vidro sustenta o bloco — e vice-versa — graças ao jogo entre os pesos desses materiais, de modo que a estabilidade de ambos os elementos dependa exclusivamente um do outro.
Territórios, 2013

O contraste de forças, bastante presente na linha de pensamento que o artista vem construindo em sua arte, resulta em um equilíbrio improvável que coloca o frágil versus o bruto. Ao mesmo tempo em que inverte as potências de uma chapa de ferro e de uma lâmina de vidro, “Linha de Terra” sabota essa disputa, uma vez que uma não se sustentaria sem a outra.

Passado este primeiro impacto cético, a firmeza da composição é entendida e comprovada, e então o trabalho revela simultaneamente a força e a fragilidade oculta nos materiais. É precisamente neste delicado momento que a obra localiza seu estado de graça: na precisão estática que mantém de pé aquilo que pode desabar a qualquer momento. É o instante que congela o que está prestes a acontecer.

Silêncio, 2011
Aproximando diferenças, torna-se possível perceber que os objetos possuem uma força conflitante ao potencial que se costuma associar a eles. O vidro, facilmente quebrável, tem uma robustez invisível intrínseca a ele, que só é percebida quando articulada por um ângulo incomum.

Em outras palavras, a obra provoca a reflexão sobre todas as estruturas ao redor, e até mesmo sobre os alicerces morais de cada pessoa. Certezas particulares são colocadas em xeque quando alternativas que coexistem na mesma realidade são detectadas. O baque deste esclarecimento faz abrir os olhos para caminhos e soluções antes assombreadas.
Tempo, 2010                                     Cumplicidade #2, 2013

A experiência estética de “Linha de Terra” se dá nessa percepção de possibilidades. O ponto de equilíbrio perfeito — que somente a exatidão das leis da física e da matemática poderia atingir — é um fenômeno que sempre foi possível, embora nunca antes vislumbrado.

Deste modo, faz sentido o título da escultura. Na geometria descritiva, linha de terra é uma linha imaginária que intercepta dois planos, servindo como referência para identificar a localização de determinado ponto no espaço. Sem ela, não é possível enxergar aquilo que se quer encontrar.

Essa poética serve como analogia à própria função da arte na visão de Túlio: tangenciar a sociedade por meio de reflexões acerca de assuntos cotidianos e até vulgares. São questões que, apesar de sempre presentes, não são consideradas com atenção justamente por nunca terem sido deslocadas a outro ponto de vista.
Transposição, 2012
Em vez de apontar verdades, a obra conduz ao conhecimento de possíveis realidades. Por meio de um jogo lúdico, em muito semelhante a um truque de mágica, “Linha de Terra” ajuda a compreender o que nosso pensamento condicionado se limita a considerar impossível: a existência, ainda que oculta, do outro lado da moeda.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Debate artístico em debate

            Recentemente, li o que pode ser entendido como um debate entre Ferreira Gullar e Noemi Jaffe acerca da condição de arte de determinadas produções atuais, e isto, por si só, me alegrou, visto que comprova a existência de um mínimo debate artístico, sobre o qual já me sentia desesperançoso.
             Vida longa a Ferreira Gullar por submeter-se ao papel de outro em um cenário tão homogeneizado, onde tudo o que é produzido, devidamente enquadrado em exigências raramente artísticas e adequadamente exibido, instantaneamente, recebe o status de arte, sem a necessidade de um debate crítico. A crítica costuma ser elaborada a posteriori com o intuito de ratificar a condição do que está sendo exibido e assegurar seu lugar no maravilhoso mundo da Arte, escrito assim mesmo, com um A bem maiúsculo. Textos laudatórios povoam um ambiente que deveria estar repleto de questionamentos e incertezas.
        Noemi Jaffe desempenha bem o seu papel de advogada de defesa da arte contemporânea, deliberando brevemente sobre algumas condições básicas para a existência de manifestações artísticas difusas e criticando, com propriedade, as tendências formalistas de Gullar. A escritora aponta como infundados alguns questionamentos levantados pelo poeta, tais como a necessidade de artesania e a beleza das obras como critério determinante para que algo seja arte.
            O interessante de tal querela é sua relevância enquanto tal. O processo de oposição de pensamentos sobrepuja qualquer veredicto que se intente alcançar. Arrisco-me a tal afirmação posto que cada contendor apresenta pontos de vistas que apesar de contrários carregam em si, cada qual, ideias que não devem ser descartadas.
Bandeira Branca
            Em favor da arte contemporânea sustenta-se a tese de que o fazer artístico não precisa estar atrelado a certa artesania, como quer Gullar, e a ampliação da ideia de belo pelas propostas modernas e contemporâneas, além da validade e importâncias de outras categorias, como é o caso do feio. Em oposição ao detrator da “arte do vale-tudo”, Jaffe argumenta com precisão ao constatar que na obra “Bandeira Branca” de Nuno Ramos “houve intervenção humana: na concepção, na montagem, na relação espacial que se criou pelo contraste entre os urubus e o prédio de Niemeyer, no poema emitido pelas caixas de som e no estranhamento causado pela presença horrífica em um lugar em que se supõe encontrar somente o 'belo'." Além de ilustrar seu posicionamento com obras de arte as quais Ferreira Gullar, de forma alguma, desconsideraria.

            Todavia, acredito que haja um deslize ao exemplificar as possibilidades da crítica com um texto seu feito para a obra “vaga”, da artista Tatiana Blass. Isto por que a obra funcionava como letreiro luminoso para uma exposição – composta por pinturas de cavalete – que apresentava uma parceria entre a artista e a escritora, e, assim sendo, torna-se complicado, mesmo perigoso, entender como crítico um texto sobre algo de que o autor faça parte, ainda que de forma indireta.
Vaga
            É exatamente neste ponto que o argumento de Ferreira Gullar ganha força: a debilidade da crítica contemporânea. Não é o caso de ter a crítica o imperativo de ir contra o instituído, de apontar pontos negativos ou adotar sempre uma postura cítrica e cética, contudo, muito pouco relevante é uma crítica que apenas enaltece a obra criticada. E a grande dificuldade enfrentada está calcada no papel que tais textos se propõem a desempenhar e nos critérios de que podem se valer para executar uma análise com discernimento.
            Os papéis do crítico e do curador vêm se sobrepondo de forma a esvaziar o discurso contestador e privilegiar a mera apresentação de obras e artistas. Os escritos que deveriam levar à reflexão se veem absorvidos por interesses e relações que não excluem a especulação financeira que permeia o mundo da arte ou a busca por um lugar ao sol, por exemplo. A crise que assola a crítica de arte - sem resvalar de forma significativa na literária e, sobretudo, cinematográfica – não é novidade, e apesar de negada ou ignorada por alguns, promove sérios debates acolhidos por importantes nomes dentre críticos e demais teóricos do campo da arte tais como Tadeu Chiarelli, Lorenzo Mammì, Sérgio Bruno Martins e pensadores da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), apenas para citar alguns.
            Esta preocupação representa um significativo primeiro passo – admitir que algo não está como deveria – rumo a um cenário melhor, contudo, assumir as falhas e chorar sobre os escombros não basta. Faz-se necessário buscar alternativas.
Bicho - Lygia Clark
 O que incomoda Gullar talvez seja não tanto aquilo que ele não entende como arte, mas a falta de critérios para que se entenda. Entretanto, não cabe, como ele insiste, tentar resgatar com nostalgias critérios insuficientes para as novas (mas, nem tanto) manifestações artísticas. O conceito de arte é mutável, algo vivo, como comprova sua própria teoria do não-objeto, impensável no século XV, para estabelecer um comparativo.

            Cabe ressaltar que tanto a crença de Noemi Jaffe nos caminhos da arte contemporânea quanto a total falta de fé de Ferreira Gullar merecem seu lugar em um debate que instigue nossa percepção acerca do que pulula no cenário artístico e desperte um senso crítico individual, o que talvez nos apareça como um escape, uma solução ainda que precária para o esmorecimento da crítica instituída.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Os Ensimesmados de Flávio Cerqueira

Decidi abrir o Ano 2 de meu blog (ainda que um tanto tardiamente) com o texto que escrevi para a abertura da primeira individual do expoente da arte contemporânea brasileira, Flávio Cerqueira. Que está acontecendo na Casa Triângulo, e segue até 23 de março de 2013.



ENSIMESMADOS

Nesta sua primeira individual em uma galeria de São Paulo, Flávio Cerqueira expõe o desenvolvimento de sua obra ao passo que seus personagens tomam consciência de um vasto horizonte, que se agiganta bem diante de seus olhos, incitando-os a extrapolar a concha que outrora os prendia em um universo restrito e experimentar tudo aquilo que antes lhes parecia impossível. Cerqueira nos convida a acompanhar esta busca por algo mais – empreitada comum a todos nós – e se, ao longo do percurso, nos esquecermos por um instante da pretensa segurança emprestada pelo chão em que firmamos os pés, e nos permitindo voltar à infância arriscarmos uma olhada para o céu, erguendo nossa vista, teremos uma grata surpresa.

O artista povoa o espaço expositivo com entes que adotam posturas reflexivas, cuja grandiosidade não se traduz em monumentalidade, mas em obras que podem ser apreendidas sem um distanciamento necessário, sugerindo certa intimidade. A forma tradicional da escultura figurativa é o meio escolhido pelo artista para tratar de temas recorrentes na contemporaneidade, como a solidão, frustrações, expectativas e esperança. A rudeza do bronze é dissimulada pela delicada pintura branca que Flavio confere às suas primeiras obras, uma falsa fragilidade condizente com o estado de espírito que delas emana. Na sequência, o artista deixa cair gradualmente este véu de porcelana injetando força em suas figuras, livrando-as paulatinamente do exílio, trazendo para o convívio elementos do mundo exterior, como uma escada ou galhos.

Inicialmente, suas figuras se encontram em situações de total introspecção, conseguindo, contudo, dialogar com o público, gerando de imediato uma sensação de reconhecimento, de cumplicidade. E aquilo que se inicia como uma expressão autobiográfica, mapeando um universo de sentimentos enraizados e conflitantes, adquire uma dimensão coletiva.

Ao travarmos contato com suas esculturas não é difícil apreciarmos algo que se manifesta além da beleza óbvia. Um ar de nostalgia nos arrebata ao mesmo tempo em que cada um daqueles seres ensimesmados nos incita a questionar o que estariam sentindo e o que se passa em suas mentes.