Múltiplos percursos são possíveis ao adentrarmos a obra de RenataCruz, contudo, o primeiro impacto que surge ao nos depararmos com sua “Proposta
para Atualização de uma Enciclopédia” passa, naturalmente, pelo encantar-se com
o detalhe. O aglomerado de pessoas esperando o trem, a variedade de espécies
animais e vegetais, os casebres de Paraisópolis ou as formigas minuciosamente
descritas pelo toque aquarelado de seus pincéis denunciam, além da inegável perícia,
a dedicação da artista. Remetem a uma espécie de tempo incompatível com um ligeiro
passar de olhos, repudiam o imediatismo, convidando o visitante a dedicar-se
mais ao contato com cada obra e investigar todas as suas nuances formais e
conceituais, abrindo-se a novas experiências.
Este abrir-se à experiência pode ser encarado simultaneamente como
consequência de uma relação estética e um dos temas explorados pela artista,
que subverte o papel primordial de toda enciclopédia – impor verticalmente uma gama
de conhecimentos pré-estabelecidos – oferecendo uma oportunidade de diálogo, de
conhecimento construído. O livro “O mundo em que vivemos”, utilizado como
referência, pretende apresentar este mundo como algo dado, enquanto Renata
propõe uma relação afetiva, estimulando o público a perceber o tal mundo em que vivemos de forma a experimentá-lo e desenvolver
suas próprias relações.
A estratégia utilizada consiste, de certo modo, em aproximar a vida
selvagem, abordada pelo livro, e a cotidiana, vivida pela artista e seus
contemporâneos. Ao lado de uma primorosa reprodução em aquarela da página da
enciclopédia relativa ao conceito de camuflagem, com texto explicativo e imagem
ilustrativa, Renata dispõe pinturas que remetem a comportamentos em que nós,
criaturas urbanas, nos valemos desta tática para nos imiscuirmos na paisagem,
nos tornando parte de um contexto ou completos invisíveis. Nosso relacionamento
com a natureza, majoritariamente opressor, é evidenciado pela grama que luta
contra o concreto pelo direito de crescer, ou pela comida enlatada que perde a
dimensão natural de sua origem. O lado animal de um ser autoproclamado racional
é cruamente exposto mediante a releitura de uma fotografia jornalística sobre uma
briga de torcidas, que sequer se configuraria como uma legítima luta pela vida.
Contudo, não é só a aproximação entre estes dois mundos que serve a
tal atualização, mas também o acréscimo de um terceiro ponto de vista: ao
ambiente fechado da enciclopédia, Renata sobrepõe o universo expansível de
Jorge Luis Borges. O escritor traz aqui uma dúvida sobre o quanto conhecemos
deste mundo tão insólito quanto qualquer obra de ficção, e amplia com suas
“legendas” as possíveis significações de cada imagem. A certeza não passa de
uma ilusão bem articulada. O mundo não seria um simples livro aberto, mas uma
coleção de livros esperando para serem lidos e interpretados.
Duas paixões pessoais – livros e aquarela – se combinam,
magistralmente, para comentar assuntos importantes para a arte contemporânea,
para a própria artista e para a nossa relação com o mundo. Questões como artesania,
apropriação, necessidade de conhecimento e mediação são, ao mesmo tempo, forma
e conteúdo neste conjunto de obras que parte de uma preocupação central com as
interações entre o indivíduo e o mundo circundante para se ramificar na busca
de novas perguntas, cujas respostas se traduzem em experiências individuais,
formas únicas de apreensão de mundos particulares.
Os percursos, traçados ou sugeridos, são como os corredores de um
labirinto que voltam sempre a um ponto de incerteza e recomeço, propício para
criar e recriar, explorando novos caminhos, como confirmam a última obra exposta,
“A Continuidade da Vida” – com páginas em branco multiplicando-se a partir de
uma sobreposição de livros que remetem a ideias como liberdade e desafio – , e a
premonitória citação no início da exposição: “Quando nos sentimos mais seguros,
então acontece algo: um pôr-do-sol, o final de um coro de Eurípedes; e outra
vez estamos perdidos”.