
Este seria apenas mais um feriado local não fosse o
fato de ter sido deliberadamente arquitetado pelo artista francês Pierre
Huyghe, que ao tomar conhecimento da construção da cidade resolveu inventar
para ela um mito fundador e convidar a comunidade a celebrá-lo. O trabalho de
Huyghe costuma girar em torno de questões como construção de identidades, tanto
coletivas quanto individuais, e de conceitos que ora se opõem ora se mesclam,
como os binômios realidade/ficção e história/memória. Temas, essencial ou
minimamente, abordados na obra em questão, anunciada pelo artista da seguinte
forma: “Estamos no ano 01, o começo de uma história (story) da qual você já é
parte. Entre as montanhas e as margens do rio Hudson, um vilarejo está se
formando na floresta. Famílias estão se mudando, a construção de ruas e casas
está quase completa, jardins estão crescendo, e logo as praças estarão cheias.”
Pierre Huyghe organizou um evento que contasse com a
participação dos habitantes da nova cidade e que, necessariamente, fizesse
algum sentido para eles. A cidade havia acabado de ser criada, e ele resolveu
propor uma tradição baseada em algo que todas aquelas pessoas tivessem - ou
parecessem ter - em comum, a busca utópica por uma vida bucólica. Uma reedição
do mito da Arcádia.
Streamside Day trata de construção sobre
construção. Um mito construído a partir de uma sociedade que se construiu
apoiada em um mito, o da possibilidade de se viver harmonicamente com natureza
no coração de uma potência capitalista em pleno século XXI. Contudo, a natureza
que eles encontram é tão artificial quanto a cidade, posto que foi reconstruída
por mãos humanas há quatrocentos anos. Neste contexto a ideia de realidade
perde seus contornos.
O que os moradores estão celebrando pertence a um
mundo situado entre o real e o imaginário. A partir do ponto de vista do
artista, os anseios da coletividade ganham forma, e aquele quinhão de ficção
previamente contido na realidade se amplifica a ponto de determinar a identidade
daquele grupo. Huyghe parece concordar com Ferreira Gullar quando este afirma
que “o objetivo da arte não é, como se diz, revelar a realidade mas, sim,
reinventá-la”.
A própria cidade se assemelha a uma fábula; como diz
Pierre Huyghe, é “pura imagem”, ecoa o projeto da Disney para uma cidade
chamada Celebration, na Flórida, que almejava ser a cidade perfeita. Um mundo
de faz-de-conta reivindicando seu lugar no mundo. A construção de Streamside e
seu rápido povoamento apontam para uma necessidade corrente de fuga da
realidade contemporânea, evoca a possibilidade de certas pessoas temerem o
presente e almejarem encontrar um local tranquilo, com ar puro, área verde e
vizinhos acolhedores, um local anterior a uma suposta contaminação provocada
pelo progresso. E o feriado funciona, sobretudo, como um marco, um índice de
que este local existe. O fato de o feriado ter sido criado, não diz muito, pois
a escolha de uma data específica para comemorar determinado evento, com seus
possíveis significados, esbarra muitas vezes em arbitrariedades, em
apropriações e esvaziamentos de outras comemorações, em suma, intervenções
humanas, como ocorre com o Natal, para citar o caso mais conhecido.
Se é verdade ou não que
todas aquelas pessoas migraram para este idílio devido à motivação apresentada
por Huyghe não é relevante para a realização da obra. O ponto é que no dia 11
de outubro de 2003 elas estavam lá, celebrando algo, e isto foi o suficiente
para gerar uma realidade alternativa, consonante ou não com os fatos. E para
reforçar esta presença, o artista produz um vídeo em 16mm, que abre com uma
reencenação do início do filme Bambi, de Walt Disney, acompanha o protagonista
saindo da floresta e entrando em uma casa similar a um cubo branco, e logo
depois uma família se mudando para a nova cidade, introduzindo, desta forma, o
mito. Na sequência é apresentado um documentário sobre as festividades
comemorativas do primeiro aniversário da cidade.
Entender este vídeo como mera documentação seria
reduzir sua significância para o contexto da obra, posto que sua produção,
assim como o projeto para o centro cultural da comunidade ou a contratação de
fotógrafos, por exemplo, é parte integrante daquele grande happening. São
maneiras de dar conta de toda a situação. O vídeo, ou de forma geral, a imagem
fotográfica é “um método de dar realce ao real”, como aponta Susan Sontag, em
seu ensaio O mundo-imagem. Ou seja, não importa o quão real ou fictício seja o
feriado, sua motivação, ou a própria noção de comunidade existente em Streamside
Knolls, o documentário garante certa indicialidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário