Recentemente, li o que pode ser
entendido como um debate entre Ferreira Gullar e Noemi Jaffe acerca da condição
de arte de determinadas produções atuais, e isto, por si só, me alegrou, visto
que comprova a existência de um mínimo debate artístico, sobre o qual já me
sentia desesperançoso.
Vida longa a Ferreira Gullar por
submeter-se ao papel de outro em um cenário tão homogeneizado, onde tudo o que
é produzido, devidamente enquadrado em exigências raramente artísticas e
adequadamente exibido, instantaneamente, recebe o status de arte, sem a
necessidade de um debate crítico. A crítica costuma ser elaborada a
posteriori com o intuito de ratificar a condição do que está sendo exibido
e assegurar seu lugar no maravilhoso mundo da Arte, escrito assim mesmo, com um
A bem maiúsculo. Textos laudatórios povoam um ambiente que deveria estar
repleto de questionamentos e incertezas.
Noemi Jaffe desempenha bem o seu
papel de advogada de defesa da arte contemporânea, deliberando brevemente sobre
algumas condições básicas para a existência de manifestações artísticas difusas
e criticando, com propriedade, as tendências formalistas de Gullar. A escritora
aponta como infundados alguns questionamentos levantados pelo poeta, tais como
a necessidade de artesania e a beleza das obras como critério determinante para
que algo seja arte.
O interessante de tal querela é sua
relevância enquanto tal. O processo de oposição de pensamentos sobrepuja
qualquer veredicto que se intente alcançar. Arrisco-me a tal afirmação posto
que cada contendor apresenta pontos de vistas que apesar de contrários carregam
em si, cada qual, ideias que não devem ser descartadas.
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Bandeira Branca |
Em favor da arte contemporânea
sustenta-se a tese de que o fazer artístico não precisa estar atrelado a certa
artesania, como quer Gullar, e a ampliação da ideia de belo pelas propostas
modernas e contemporâneas, além da validade e importâncias de outras
categorias, como é o caso do feio. Em oposição ao detrator da “arte do
vale-tudo”, Jaffe argumenta com precisão ao constatar que na obra “Bandeira
Branca” de Nuno Ramos “houve intervenção humana: na
concepção, na montagem, na relação espacial que se criou pelo contraste entre
os urubus e o prédio de Niemeyer, no poema emitido pelas caixas de som e no
estranhamento causado pela presença horrífica em um lugar em que se supõe
encontrar somente o 'belo'." Além de ilustrar seu posicionamento com obras
de arte as quais Ferreira Gullar, de forma alguma, desconsideraria.
Todavia, acredito
que haja um deslize ao exemplificar as possibilidades da crítica com um texto
seu feito para a obra “vaga”, da artista Tatiana Blass. Isto por que a obra
funcionava como letreiro luminoso para uma exposição – composta por pinturas de
cavalete – que apresentava uma parceria entre a artista e a escritora, e, assim
sendo, torna-se complicado, mesmo perigoso, entender como crítico um texto
sobre algo de que o autor faça parte, ainda que de forma indireta.
Vaga |
É exatamente
neste ponto que o argumento de Ferreira Gullar ganha força: a debilidade da
crítica contemporânea. Não é o caso de ter a crítica o imperativo de ir contra
o instituído, de apontar pontos negativos ou adotar sempre uma postura cítrica
e cética, contudo, muito pouco relevante é uma crítica que apenas enaltece a
obra criticada. E a grande dificuldade enfrentada está calcada no papel que
tais textos se propõem a desempenhar e nos critérios de que podem se valer para
executar uma análise com discernimento.
Os papéis do
crítico e do curador vêm se sobrepondo de forma a esvaziar o discurso
contestador e privilegiar a mera apresentação de obras e artistas. Os escritos
que deveriam levar à reflexão se veem absorvidos por interesses e relações que
não excluem a especulação financeira que permeia o mundo da arte ou a busca por
um lugar ao sol, por exemplo. A crise que assola a crítica de arte - sem
resvalar de forma significativa na literária e, sobretudo, cinematográfica –
não é novidade, e apesar de negada ou ignorada por alguns, promove sérios
debates acolhidos por importantes nomes dentre críticos e demais teóricos do
campo da arte tais como Tadeu Chiarelli, Lorenzo Mammì, Sérgio Bruno Martins e
pensadores da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), apenas para
citar alguns.
Esta preocupação
representa um significativo primeiro passo – admitir que algo não está como
deveria – rumo a um cenário melhor, contudo, assumir as falhas e chorar sobre
os escombros não basta. Faz-se necessário buscar alternativas.
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Bicho - Lygia Clark |
O que incomoda
Gullar talvez seja não tanto aquilo que ele não entende como arte, mas a falta
de critérios para que se entenda. Entretanto, não cabe, como ele insiste,
tentar resgatar com nostalgias critérios insuficientes para as novas (mas, nem
tanto) manifestações artísticas. O conceito de arte é mutável, algo vivo, como
comprova sua própria teoria do não-objeto, impensável no século XV, para
estabelecer um comparativo.
Cabe ressaltar
que tanto a crença de Noemi Jaffe nos caminhos da arte contemporânea quanto a
total falta de fé de Ferreira Gullar merecem seu lugar em um debate que instigue
nossa percepção acerca do que pulula no cenário artístico e desperte um senso
crítico individual, o que talvez nos apareça como um escape, uma solução ainda
que precária para o esmorecimento da crítica instituída.
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