Dia
desses, no trabalho, fui ao setor do meu amigo Paulo Yasumura e, apesar de ter
visto sua sala inúmeras vezes, reparei com uma atenção inabitual na decoração
que ele havia “imposto” ao ambiente.
Ao
outrora frio e inóspito local de trabalho, típico de repartição pública, ele
acrescentou dois pequenos pontos de luz: uma reprodução de um Van Gogh e outra
de um Klimt. Penduradas em paredes opostas, frente a frente, como se lançando
olhares incentivadores entre si e gritando em uníssono “- Força! Nós podemos
equilibrar as coisas por aqui!”.
Quando
toda essa gritaria chamou minha atenção, achei isso um esforço nobre da parte
delas e, da parte dele... bem, eu entendi sua necessidade.
Para
situar o leitor vou dizer onde estávamos:
Em
um quartel da Aeronáutica, até que bem estruturado, com instalações acima da
média, mais precisamente no seu setor de PABX que conta com um balcão de
atendimento, um gabinete em “L” sobre o qual dois computadores, uma impressora
e um telefone se apoiavam junto com pastas e pastas de documentos e papeis
amontoados. Em uma das paredes, dividindo seu espaço com um fragmento de Medicina, três prateleiras com
ferramentas e mais papéis, além de um micro system anos 90. Já fazendo
companhia a uma reprodução em couché da Noite
Estrelada, repousando soberano, com a pose majestosa de quem domina o
ambiente, um quadro de distribuição de ramais, com seus cabos e plugs expostos
feito ferida que teima em não cicatrizar. Completando o preenchimento da sala de
menos de 10 m², dois racks de equipamentos técnicos. Além disso, canaletas cor
de tédio ornavam teto e paredes.
Dá
para se ter uma idéia, creio eu, do quanto ele, aspirante a filósofo, se sentia
sufocado.
Foi
saltando do claustro físico para o psicológico que uma breve conversa se
instaurou.
Como
se pode imaginar, um quartel não é um lugar propício para colóquios
filosóficos, papos sobre arte ou coisas do gênero. Contudo, vez ou outra, com
as pessoas certas, um bom debate acaba por fluir.
No
caso em questão, tivemos muito menos um debate que um desabafo, já que nossos
argumentos coincidiam na maior parte das vezes, tendo o saldo me inspirado a
redigir este post.
***
Não
pude deixar de estabelecer um paralelo entre aquela sala e nossa vida
cotidiana.
Responsabilidades,
necessidades, desejos, ambições, objetivos, pouco a pouco, nos sufocam,
substituem a vida e nos fazem esquecer de viver.
A
ditadura dos modismos, a angústia de nunca ser bem sucedido o suficiente, a
cobrança incessante sobre nossos ombros, inundando olhos e ouvidos e
impregnando a alma, tudo isso é sintoma da realidade que nos cerca.
A
ânsia por riquezas materiais e a incapacidade de nos interessarmos por
atividades que não apresentem uma finalidade prática, um utilitarismo bem
definido acabam por secar a nossa capacidade de abstração e influenciam
negativamente mesmo aquelas atividades que julgamos necessárias e importantes
para nossas vidas burocráticas.
Pontos
de luz precisam ser colocados em nossas vidas. Este, acredito, é o papel da
arte. Desempenhar a função de “outro” em um mundo orientado para finalidades práticas.
Remeto
aqui ao choque sofrido no início do século passado, quando a industrialização
encantava a sociedade e punha em cheque a utilidade de uma atividade artesanal
como a arte, ou já na segunda metade, quando as possibilidades de experiências apresentadas
pelo mundo levou Kosuth a afirmar:
“A
validade da obra de arte não está ligada à apresentação de experiências visuais
ou quaisquer outras. (...) Em nossa época encontramos um ambiente drasticamente
mais rico em termos de experiência. (...) Certamente não se pode esperar que
objetos de pintura e escultura, assim como a arte, possam competir com isso em
termos de experiência.”¹
Tenho
a impressão de que se acreditava que a arte precisaria disputar espaço com a
realidade ao seu redor, quando na verdade ela deveria servir de alternativa, ou
seja, não disputar espaço, mas integrar o espaço, assim como aquelas
reproduções se esforçam para fazer na sala do meu amigo. Elas sequer combinam
com o ambiente e, por isso mesmo, se fazem imprescindíveis.
Hoje
é possível dizer que a arte está bem inserida na nossa realidade, mas está
perdendo, em muitos casos, a oportunidade de desempenhar o seu papel de outro.
Tão inserida a arte se encontra, ela tende a se guiar por interesses externos à
própria arte. Expor, e consequentemente, expor-se, vender, participar da cena,
estar “in”, passam, não raro, a ser o foco do artista.
Opinião
minha: Acho que o trabalho de reedição das vanguardas, a exploração da arte
conceitual, nos moldes que foi feita com muita propriedade nos anos 70, são
caminhos que já se encontram desgastados. Não, que não existam artistas que se
preocupem em falar com relevância para o púbico contemporâneo, existem alguns
tantos. Mas, nas palavras da vice-presidente da ABCA (Associação Brasileira de
Críticos de Arte), “há pouca oferta de arte de qualidade; há muitos artistas
que surgem fabricados pela mídia mas não se mantém porque só o tempo confere o reconhecimento
e a consagração.”²
E
estes pretensos artistas são os aproveitadores. São os que se valem do fato de
que um mictório foi transmutado em arte para expor um pinico, por exemplo.
Mas
o que isso tem a ver com a sala do sargento filósofo?
Relações Interpessoais - 2012. Minha obra em exposição no MET (Há!) |
Meio
que de brincadeira eu falei que a sua sala possuía obras modernas e uma
contemporânea, me referindo ao quadro de distribuição de ramais.
Ele
riu. E eu insisti, surpreendido por minha própria brincadeira. Sem deboche,
poderia mesmo ser uma obra de arte. Se um artista a intitula “relações
interpessoais” e a coloca em um espaço expositivo, ela vai dar o que pensar. E,
vou mais longe, se ela não tiver título dará ainda mais o que pensar, caso a
audiência esteja disposta a tanto.
Mas há o risco. Risco de alguém bem relacionado
fazer o mesmo com qualquer objeto, operando a “transfiguração do lugar comum”,
tão cara a Arthur Danto, sem outro objetivo que não seja o de expor alguma
coisa e se tornar artista. Concluímos que risco não é sinônimo de problema, mas
de: “atenção!”
Discutindo brevemente sobre intenções artísticas,
veredicto a longo prazo, papel das instituições... chegamos ao ponto em que comparamos
a Caveira de Diamantes de Hirst e a
ação Aqui bate um coração. Vimos
algumas obras interessantíssimas de Hirst na excelente Em nome dos artistas,
mas concordamos que a tal caveira se relaciona mais ao ego do artista, enquanto
os corações afixados nos monumentos batem forte em cada coração que transita
pelas cidades.
Não defendo, simplesmente, uma arte política,
engajada. Cabe a este tipo de arte ser uma possibilidade, não a regra. Sou a
favor da boa arte, da que já foi feita, da que se faz e da que ainda será
feita, desde que ela não tenha ares de futilidade, não seja mais uma mercadoria
supervalorizada, mais um fetiche, um criador de desejos e necessidades, mas um
lugar em que possamos, nos desvencilhando de toda a poluição da vida
contemporânea, esticar o pescoço, erguer a cabeça, inflar o peito e, enfim,
respirar.
_________
1- KOSUTH,
Joseph. Arte depois da filosofia. Malasartes,
Rio de Janeiro, n.1, p. 10-13, ago/set/out. 1975
vc tah terceirizando hein!? fui eu que fiz aquele quadro de distribuição!! kkkkkkkk
ResponderExcluirCalúnia!!! Vc até trabalha com ele, mas quem procedeu à apropriação artística fui eu!!!! kkk
ResponderExcluirOlha meu amigo.. fiquei muito feliz pela seu post! Temos que transformar esse nosso dia-a-dia ordinário em uma experiência que enriqueça nossa visão das coisas que estão ao redor, essa vida é uma viagem... o mínimo que podemos fazer é apreciar a paisagem. Valew e continue produzindo!!!!
ResponderExcluirAdorei o texto! Olha a situação: Estava estudando e quando terminei uma bateria de exercícios pensei "preciso fazer uma pausa e dar uma olhadinha na internet", quando entrei, instantâneamente, já me senti culpado por ter parado para respirar, mas fiquei feliz por ter sido presenteado com essa reflexão.
ResponderExcluirAgora deixa eu voltar aos estudos porque eu sou um acorrentado pelas minhas ambições...
Nossa, Geraldo!! Fiquei bem feliz de ter contribuído um pouco pra amenizar a sua pressão!!Força nos estudos, mas não esqueça de respirar!! rs
ResponderExcluirGostei bastante do seu comentário.
Abração!!
Fala, Wabi! Produção, produção!! kkk
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